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Reprodução: "Uma história idiossincrática da simplicidade (10)" de João Moreira Salles

Há cerca de dez anos, João Moreira Salles - diretor de documentários como Entreatos (2004) e Notícias de uma guerra particular (1999) - escreveu uma série de textos que chamou de "Uma história idiossincrática da simplicidade" e foram publicados no falecido site www.no.com.br

Abaixo reproduzo a décima parte dessa história que foi extraída da página http//www.no.com.br/revista/noticia/42130/atual em 28 de junho de 2003. Infelizmente o texto faz referência a várias figuras que não estão mais disponíveis pois o servidor foi tirado do ar. Apenas reproduzo uma imagem que foi copiada para o meu computador.

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Uma história idiossincrática da simplicidade (10)
[ 28.Out.2001 ]

Por João Moreira Salles

Hoc iam dictum est,

Hoc iam notum est,

Hoc iam non interest*

*“Já se sabe, já se disse, não interessa”, máxima com a qual o cônego Ladislau não perdia tempo (ver primeiro artigo), fazendo com que seu dia rendesse que era uma beleza. Nesta foto, os jovens seminaristas da Ordem dos Clérigos Ligeiros (da qual o cônego é primaz) fazem fila para aprender com Ladislau como ler todos os tomos da Suma Teológica de são Tomás de Aquino em três sessões de 12 minutos. Para os mais estudiosos, o cônego lembra que a adição de três minutos à carga de leitura permite que se leia também os comentários de são Jerônimo ao Antigo Testamento.

Mapas, diagramas e o mundo

Em 1931, um rapaz de 25 anos sentou-se numa mesa e rabiscou doze linhas num caderno de exercícios, estendendo-as no espaço de duas páginas espelhadas. O desenho foi preservado. Hoje, ao olhá-lo, tem-se a impressão de que o rapaz esboçava um circuito integrado. Mas não. Aquelas poucas linhas representavam um desses pequenos triunfos da inteligência - pequenos porque resolvem problemas relativamente insignificantes diante dos grandes dramas do mundo, mas triunfos assim mesmo. No caso, da estirpe das soluções inauguradas por Colombo e seu ovo: óbvias depois de pensadas; antes, insondáveis.

Em alguma parte de sua obra, Jorge Luis Borges escreve sobre o mapa perfeito. Esse mapa indicaria não só todas as estradas ao longo do caminho, como também cada atalho, cada ponte, cada desvio, cada casa, cada cerca, cada poste, cada árvore, e destas, cada galho e cada folha. O paradoxo desse mapa, segundo Borges, é que ele é ao mesmo tempo perfeito e inútil. Ao coincidir perfeitamente com o mundo, ao se tornar tão grande e tão complexo como ele, o mapa trai sua razão de ser. Transforma-se no antimapa, pois é da essência dos mapas simplificar o mundo. Todo cartógrafo faz um julgamento daquilo que é essencial à geografia e descarta o resto. De uma maneira muito concreta, fazer mapas é desrespeitar a geografia.

Harry Beck, o rapaz das doze linhas, sabia disso. Beck era inglês, um povo notoriamente inquieto dentro de sua pequena ilha, desde sempre disposto a explorar o mundo - África, Antártica, Pólo Norte, Ásia, América do Sul - com mapas à mão. Beck, porém, não pensava em grandes aventuras quando rabiscou suas linhas. Tinha uma pretensão modesta. Não pretendia facilitar a vida de um Livingston ou de um Scott, mas de um viajante mais prosaico: o passageiro de metrô de Londres.

O metrô de Londres é o mais antigo do mundo. Começou a ser construído em 1863 e, nas primeiras décadas do século XX, já contava com mais de uma centena de estações (hoje são 275). À medida que crescia, o sistema ia se tornando um pesadelo gráfico para os funcionários incumbidos de explicar as diferentes rotas para o público. As várias linhas riscavam o subsolo de Londres em todas as direções, passando por cima, por baixo e ao lado umas das outras, afastando-se e novamente se aproximando, dando voltas e rodopios, parando a cada cem metros em novas estações para subitamente avançar três ou quatro quilômetros sem nenhuma parada.

Os primeiros mapas do metrô de Londres surgem por volta de 1870. Enquanto as estações foram poucas, eles se mostraram relativamente compreensíveis, mas por volta de 1900 a algaravia visual já imperava. Dezenas de pequenos retângulos lançados sobre o mapa das ruas de Londres indicavam aos passageiros o local das estações, sem no entanto deixar claro o esquema de conexões - como chegar de uma estação a outra. Em 1918, as diferentes linhas de metrô são assinaladas com riscos grossos sobre o mapa da cidade, e as estações são tantas, e às vezes tão próximas, que as letras de seus nomes freqüentemente encostam em duas ou mais estações, confundindo o passageiro, que não sabe distinguir qual nome pertence a qual estação. De relance, esses mapas lembram o sistema vascular de um inseto, com sua concentração de artérias irrigando os órgãos vitais e umas poucas linhas extremas partindo rumo à periferia das patas e das asas. Há algo de orgânico nessas curvas, nessa inexistência de ângulos retos ou traços perfeitos. Como Beck perceberá mais tarde, o grande problema desses mapas é que eles são excessivamente verdadeiros.

É possível que a primeira intuição de Beck tenha sido despertada por um anúncio de uma loja de departamentos chamada Peter Robinson. Em 1907, a empresa publicou um pequeno mapa mostrando aos londrinos como chegar à sua loja em Oxford Circus. Os nomes das estações estão estampados da maneira confusa habitual - espremidos, as letras viradas em todas as direções -, mas há algo de surpreendentemente novo nesse mapa: Londres desapareceu (1). Foram-se as ruas, os parques e até o rio Tâmisa. Ficaram apenas os riscos das linhas de metrô. É como se, da anatomia do corpo, tivessem sido removidos todos os órgãos e tecidos conectivos - nervos, músculos -, para deixar apenas as veias e artérias que se pretende estudar. De repente, pelo simples fato de eliminar informação, ganha-se clareza. Era isso que Beck desejava: ser claro.

Para o londrino perdido nos subterrâneos do metrô, o recurso de subtração adotado pelo pequeno anúncio da loja de departamentos já era um passo à frente rumo à clareza, mas Beck queria mais. Em 1931, diante do seu caderno de exercícios, ele teve a súbita iluminação. Como geralmente ocorre nas soluções elegantes, sua invenção nasce, toda ela, de uma única constatação, tão simples quanto clara: quem está debaixo da terra não precisa saber da superfície. De nada adianta verificar que o percurso de um trem subterrâneo descreve uma curva para o norte, e outra para o leste, antes de chegar à estação seguinte. Beck percebeu que, para o passageiro, a única informação relevante é saber que desta estação só se pode chegar àquela outra. O traçado e a distância entre elas não têm a menor importância. Seja qual for o caso - esteja o trem indo para o norte ou para o sul, esteja a próxima estação a cem metros ou a quatro quilômetros -, o passageiro não tem alternativa a não ser esperar sentado até que o trem pare. Beck concluiu que a solução que buscava não estava num mapa, mas num diagrama.

A diferença entre uma coisa e outra não reside no fato do diagrama desrespeitar a geografia - como ensina Borges, mapas também devem fazer isso -, mas em algo mais radical: diagramas distorcem a geografia. O diagrama de Beck é absolutamente infiel a Londres - representa trens indo para o leste quando na verdade rumam para o norte, indica estações homogeneamente eqüidistantes, quando na verdade nenhuma está à mesma distância da outra - e exatamente por isso é o mais eficiente guia visual já inventado para quem deseja sair de um ponto da cidade e chegar a outro por debaixo da terra. Todas as curvas são transformadas em ângulos retos ou a 45 graus, todas as sinuosidades são eliminadas, todas as linhas sofrem uma correção semelhante à que ocorreria se alguém esticasse o fio imaginário que corre entre a primeira e a última estação de cada uma delas, trazendo assim todas as estações intermediárias para o mesmo plano: sempre uma reta, que pode ser vertical, horizontal ou diagonal. A zona central de Londres, por abrigar um número maior de estações do que a periferia da cidade, ocupa um tamanho desproporcional à sua realidade geográfica, conseqüência imediata do fato de Beck ter disposto todas as estações a intervalos regulares.

Assim como no anúncio da loja de departamentos, a Londres real também desaparece, com a única exceção do rio Tâmisa, que resiste por exigência das autoridades de transporte. Até mesmo uma seta indicando o norte, impressa no alto de uma versão de 1933, é eliminada no ano seguinte. Beck insistia com razão que qualquer informação sobre a superfície só ajudaria a piorar o diagrama. Em 1949 ele conceberia a versão definitiva do esquema. Com ligeiras modificações, é aquela que se usa até hoje. Poucos anos depois, quase todos os metrôs do mundo adotavam o mesmo padrão visual.

A invenção do diagrama do metrô de Londres é possivelmente a maior contribuição individual às artes gráficas no século XX, uma espécie de Capela Sistina do design visual. Não existe outro trabalho nessa área que tenha exercido influência maior. Provavelmente sem saber o significado da expressão "artes visuais", Beck realizou a síntese que todos buscam mas pouquíssimos conseguem: distinção visual e eficiência narrativa. O diagrama é não apenas elegante, mas claro. Sua elegância é a razão de sua clareza.

O princípio do diagrama de Beck é uma redução ao mais simples, mesmo que isso resulte numa contrafação da realidade. É primo próximo, por exemplo, daqueles esquemas de física newtoniana que aprendemos na escola, nos quais todo corpo é reduzido a um ponto, todo trajeto a uma linha, e em que nos pedem para "desconsiderar todas as outras forças, inclusive o atrito provocado pela atmosfera". Apesar dessas situações serem absolutamente fictícias - não andamos para frente em forma de bolinha no éter -, é com elas que conseguimos prever a força do impacto da proverbial maçã na cabeça do gênio. No dia (também fictício) em que Newton decidiu tirar a tal soneca embaixo da macieira, é provável que corresse uma pequena brisa pelo lugar; é certo que pequeníssimos corpos pairavam pela atmosfera; é possível que Newton dormisse de boca para cima e fosse dono de um desses roncos satisfeitos que terminam em assobio. Teoricamente, todas essas circunstâncias interferem no rumo da maçã, mas seus respectivos efeitos são tão insignificantes diante do poder de atração da massa da Terra (com a possível exceção da brisa, caso se transformasse em tufão) que a teoria clássica decide desprezá-los - com ou sem brisa, partículas ou ronco, a maçã acertará a testa de Newton. Se é isso que interessa, as circunstâncias desse pomar, assim como as circunstâncias da Londres de Beck, podem ser desconsideradas. Não passam de ruído.

Existe virtude narrativa na noção de simplicidade. Antes de Copérnico, por exemplo, o mundo supunha que todos os corpos celestes giravam em torno da Terra. Surpreendentemente, o sistema geocêntrico de Ptolomeu conseguia determinar com considerável precisão o movimento dos planetas. Ou seja, para as previsões aproximadas com as quais os antigos se contentavam, Ptolomeu era conveniente. Seu sistema, melhor do que qualquer outro, cumpria o objetivo. As pequenas imprecisões da teoria eram relevadas, mas mesmo para estas Ptolomeu oferecia explicações. Ao espetar a Terra no centro do universo e movimentar todos os corpos ao redor dela, Ptolomeu foi forçado a introduzir complexidades no sistema, de modo que não falhasse. Tais complexidades buscavam explicar porque determinados planetas e satélites, ao invés de aparecer em local e hora determinados pela teoria, teimavam em surgir em pontos insuspeitos do céu, movimentando-se idiossincraticamente.

Pode-se descrever de duas maneiras o movimento de uma pessoa que atravessa um quarto. É possível dizer que ela sai de um lado do cômodo e avança até encostar na parede oposta. Ou, alternativamente, pode-se fixar essa pessoa e afirmar que é todo o quarto que recua em relação a ela - paredes, estantes, livros, cadeiras, tapete, cama -, que todos os objetos se deslocam até que a parede oposta acabe encostando no nariz de quem ficou parado. Como mover significa alterar posições relativas, e como estas permanecem idênticas nas duas descrições, ambas são essencialmente corretas. Mas há algo que as distingue: a segunda é muito mais complicada do que a primeira. É essa complicação que acaba denunciando a impropriedade de Ptolomeu.

O sistema de Copérnico é uma esplêndida simplificação do complicado. Se considerarmos a contribuição posterior de Kepler, corrigindo as imprecisões de Copérnico, o sistema heliocêntrico é um desses feitos da razão que ocorrem muito raramente na história. Com um só gesto - uma mudança de perspectiva, na verdade: parar o Sol e deixar a Terra andar - tudo se acerta e a idiossincrasia desaparece. De um só golpe, todos os planetas passam a cruzar do mesmo modo o espaço, andando pelos céus como bons soldados em ordem-unida. O que vale para um, valerá para todos. Uma só órbita - "a órbita dos planetas são elipses com o sol em um dos focos" -, uma lei universal - "os planetas varrem áreas iguais durante tempos iguais na órbita". Junte-se a elas uma terceira lei que associa o período orbital dos planetas à sua distância em relação ao Sol, e toda a mecânica do sistema solar estará contida em três sentenças tão simples que nós as aprendemos na escola. As andanças de nove planetas e suas dezenas de luas cabem nas 41 palavras necessárias para exprimir, em português, as três leis de Kepler. (O Hino à Bandeira emprega 108 palavras.) Se traduzirmos as duas últimas leis em notações matemáticas, o sistema solar se reduz a doze palavras e algumas poucas letras. É menos do que se gasta para pedir e pagar um cafezinho com açúcar num botequim.

Num livrinho chamado A argumentação de um matemático, o matemático inglês G. H. Hardy afirma que, assim como o pintor ou o poeta, o matemático também é um criador de padrões e que estes devem ser memoráveis e belos. "A beleza é o primeiro teste: não existe lugar no mundo para matemática feia." Hardy concede que é difícil definir a qualidade dessa beleza e tenta enfrentar o problema apresentando dois teoremas gregos, o primeiro de Euclides (os números primos são infinitos), o segundo de Pitágoras (é um número irracional). Antes de reproduzir as demonstrações clássicas, Hardy sugere onde está a beleza que ele busca definir: "São teoremas simples - simples de idéia e de execução -, mas não há dúvida de que são teoremas da mais alta categoria. Cada um permanece tão novo e tão significativo como no dia em que foi descoberto. Dois mil anos não lhes trouxeram uma única ruga".

Trata-se de uma beleza imune ao tempo, bela da primeira vez que foi concebida, bonita ainda hoje, bonita no futuro. Todos que estudaram matemática na escola, mesmo os que sempre odiaram a matéria, sabem do prazer que é a súbita compreensão de um teorema. A sensação advém, em parte, de excluirmos o arbitrário e a imprecisão - uma vez no caminho da demonstração, não há outro destino a não ser a solução postulada pelo teorema. É como se a razão montasse num trilho e cessasse de vagar. Cada passo da demonstração conduz inevitavelmente ao seguinte, e a seqüência dos passos, fatalmente, sem desvios, leva à conclusão. Hardy mostra que a beleza matemática reside precisamente nessa absoluta impossibilidade de chegar a outro lugar.

O que caracteriza um teorema "da mais alta categoria" - e para Hardy todo teorema inclui sua demonstração - é "uma característica de inesperado, combinada com inevitabilidade e economia: os argumentos assumem uma forma tão surpreendente e estranha; as armas usadas parecem tão simples, tão infantis em comparação com a importância dos resultados; apesar de tudo isso, é impossível escapar das conclusões." No caso do teorema de Euclides, por exemplo, o inesperado surge da estratégia adotada para demonstrá-lo (veja a demonstração clicando aqui). Reza a boa lógica que toda vez que se quer defender um ponto de vista, é sensato amealhar os melhores argumentos que o sustentam. Euclides faz exatamente o contrário: usa da melhor lógica para provar o oposto da sua tese. Como não consegue, prova que o contrário do que sustenta é falso. Segue-se inevitavelmente que, como a antítese é absurda, a tese é verdadeira (2).

A terceira qualidade da demonstração, a que mais interessa aqui, é a economia. Não há nenhum detalhe supérfluo, nenhuma etapa desnecessária. Cada passo é essencial. Suprima-se qualquer um e a demonstração falha. Hardy mostra de que maneira, na matemática, não se gasta munição à toa nem se confundem estratégias: uma só linha de ataque é suficiente. O resultado é a concisão absoluta, o inverso de qualquer retórica. Por vezes, alcança-se a concentração máxima. O físico Richard Feynman fala da inacreditável velocidade com que símbolos matemáticos conseguem transmitir informação. Pois bem: suponho que E=mc² seja a maior síntese já concebida pelo homem. Em três letras, um algarismo e um sinal está contada a história de todo o universo, do início ao fim. Do ponto de vista estético, não pode haver maior elegância e beleza.

Hardy afirma que os padrões matemáticos devem ser limpos de qualquer excesso. Suponho que os esquemas físicos também. Quando se coloca lado a lado o sistema de Ptolomeu e o de Copérnico, não resta dúvida de que o segundo é mais elegante. Para enfrentar as imprecisões, Ptolomeu se viu obrigado a supor pontos e linhas imaginárias - que chamou de deferentes, equantes e epiciclos - capazes de justificar os movimentos aparentemente aleatórios dos planetas. Para Copérnico, nada disso era necessário. Ao fixar o Sol, ele reduziu automaticamente o número de variáveis que explicavam o mesmo fenômeno.

Duzentos anos antes do sistema heliocêntrico, caso um religioso inglês chamado Guilherme de Ockham houvesse tido a oportunidade de comparar os dois sistemas, não hesitaria em dizer: Copérnico está certo. Ockham não era físico - era teólogo -, mas, de duas teses conflitantes, sabia reconhecer a correta. O critério que adotava era simples e pode ser resumido na sua frase mais famosa: "Não se deve multiplicar os seres desnecessariamente".

Guilherme de Ockham foi um homem notável. Nasceu em 1285, cinqüenta anos depois do estabelecimento da Inquisição. Quando entrou em Oxford, começou a escrever seus tratados de filosofia. O argumento central de todos eles propõe que só se pode falar da verdade através da experiência. Para Ockham, todo conhecimento parte da evidência sensível do mundo. O que se pode ter certeza de que existe é o que se experimenta - esta cadeira, este homem, este gesto bondoso. Idéias universais como a cadeira abstrata, o homem ideal ou a bondade são objetos de pura especulação. Para Ockham, são elementos de fé e não de razão. Fora do que é concreto e particular não há lógica possível. Ockham afirmava que fazer filosofia ou ciência sobre objetos abstratos era adotar "conceitos confusos" para explicar o que não podia ser explicado pela inteligência. É surpreendente, e maravilhoso, que esse empirismo radical saísse da cabeça de um homem de fé. A filosofia de Ockham funciona como um princípio de asseio, eliminando da inteligência, como alguém que limpasse um armário, tudo o que obstrui o pensamento lógico. Em plena vigência dos tribunais da Igreja, eis o que Ockham elimina: a alma, a vida eterna, a infinitude de Deus. Segundo ele, nada disso está ao alcance da nossa experiência, tanto pode existir como ser uma quimera. Não há como saber, ao menos não com a razão.

Em pleno século XIV, não é pouca coisa pôr em dúvida a existência da alma. Mas Guilherme de Ockham vai além. O que propõe é um mundo de total desconfiança metafísica. Como foi suposta a existência de Deus, e como Lhe foi conferido o atributo da onipotência (do contrário não seria o Deus cristão), Guilherme de Ockham avisa que é preciso levar essas premissas às últimas conseqüências. É verdade que o mundo se comporta de maneira regular e habitual, mas não há nada que não poderia ser diferente, se Deus assim desejasse. Aos que têm medo das implicações dessa frase, Ockham lembra que esse é precisamente o primeiro artigo de fé do credo cristão: "Creio em Deus Pai Todo-Poderoso...". Como limitar o desejo de quem é todo-poderoso? Suprimida a certeza das essências e das formas universais que garantem a estabilidade do mundo - a eterna e constante essência da cadeira, do homem, da bondade -, não há como nos defendermos da arbitrariedade divina. Para Ockham, nada impede que Deus salve os pecadores e perca os inocentes. Se não o faz é porque não o deseja. Mas poderia desejar.

Em 1324, Guilherme de Ockham é chamado a Avignon para responder a acusações de heresia. Não se retrata e ainda acusa o Papa de herege. Foge para a Alemanha e morre em Munique, na corte do imperador Luís da Baviera, adversário do Papa. Surpreendentemente, jamais foi condenado como herege. Os comentaristas de sua obra se perguntam se Ockham deve ser considerado como o último dos pensadores medievais ou o primeiro dos modernos. Não se chegou a um consenso, mas de minha parte vejo Ockham como o homem que abriu as portas da filosofia para o mundo concreto, que é esse em que vivemos, longe dos anjos. Ao declarar que só se pode conhecer aquilo que se experimenta, Ockham pavimentou o caminho para a ciência moderna que, duzentos anos depois, viria arejar o mundo escuro da Idade Média. Kepler, Galileu e Newton não existiriam sem o telescópio e a experimentação.

Ockham foi o primeiro a dizer que, antes de deduzir, é necessário observar. Seu princípio geral de economia até hoje é percebido como uma saudável norma científica. A passagem inteira diz assim: "Porque as entidades não devem ser multiplicadas desnecessariamente, de duas teorias que explicam o mesmo fenômeno, a mais simples é necessariamente melhor". Não existe melhor formulação contra a retórica. Ou maior defesa da simplicidade.

De onde Guilherme de Ockham teria herdado essa desconfiança tão grande contra toda falsa complexidade? E de onde viria essa sua fé tão imensa no mundo? Imagino uma resposta: da Inglaterra. Os ingleses sempre foram menos deslumbrados por idéias incompreensíveis do que o resto da Europa (comparados aos franceses, então...). Fundamentalmente, são pessoas de bom senso. Antes mesmo de Guilherme de Ockham, o pensamento inglês já era marcado por uma forte tradição empírica, da qual poucas vezes se afastou. Nesse sentido, os ingleses sempre foram os antialemães, os antifranceses. Guilherme de Ockham é ao mesmo tempo causa e conseqüência dessa tradição. O fato de ter nascido na Inglaterra, portanto, explica parte do mistério. Mas não todo. O apego à clareza, bem como a crença no mundo, são traços de uma outra tradição da qual Ockham era parte, uma tradição relativamente nova em 1285, quando ele nasceu, embora seja difícil imaginar força mais inovadora em toda a Idade Média. Guilherme de Ockham era franciscano.
Existem três imagens de São Francisco pintadas poucos anos depois de sua morte, em 1226. A primeira é de 1240, e é possível que o autor ainda guardasse Francisco na memória. As outras duas são da segunda metade do século XIII, a primeira de um pintor sobre quem pouco se sabe, Margarito d'Arezzo, a segunda de Cimabue, de quem se sabe bastante. São algumas das primeiras imagens de Francisco, e apesar do talento diverso dos pintores - Cimabue é um dos grandes artistas da história da pintura - há algo que as une, além do fato óbvio de serem retratos do mesmo homem. As três imagens mostram a figura tocante de um homenzinho sem graça, de pele baça, rosto comum e corpo frágil. Um maltrapilho qualquer.

Francisco foi canonizado dois anos depois de sua morte, num dos processos de santificação mais rápidos da história da Igreja. Em vida, já era percebido como um homem incomum, o mais puro de todos, e antes que morresse sua história já se espalhara pela Europa. Se a Idade Média foi capaz de produzir um herói popular, Francisco foi esse herói - o frágil mendigo de Deus que, com seu amor à pobreza, devolveu a Igreja ao povo. Não surpreenderia, portanto, se sua iconografia se apressasse em representá-lo não apenas como herói, mas como super-herói, o santo louro, alto e belo que, segundo Jacques Le Goff, era o cânone estético da época, tomado de empréstimo ao tipo físico do cavaleiro nórdico. Mas Francisco foi o primeiro santo da Igreja que resistiu a essa idealização. Foi pequeno e feio em vida, e seguiu pequeno e feio na morte. Esse é um dos grandes legados que deixou ao mundo - não ter vergonha do que se vê. Ockham é fruto disso.

Ao permanecer feio, o homenzinho feio ensinou a sensibilidade ocidental a aceitar as coisas como são, sem precisar orná-las ou escamotear suas imprecisões. É por isso que Francisco será um dos dois personagens do último capítulo desta história da simplicidade. O outro será aquele que, entre todos os artistas, melhor aprendeu sua lição: Giotto. Juntos, os dois nos autorizaram a gostar do mundo.

Colaboraram com este artigo os astrônomos Érika Cristina Moura Fernandes, Cleber Tavares dos Santos Jr. e Celso Henrique D. Valente de Figueiredo.


1 Nos dois únicos livros sobre mapas do metrô de Londres que pude consultar, o de Peter Robinson é o primeiro que utiliza esse recurso. Não é impossível que outras pessoas tenham tido a idéia antes.

2 Sobre esta estratégia adotada por Euclides, Hardy escreve o seguinte: "A prova é por reductio ad absurdum, e reductio ad absurdum, de que Euclides tanto gostava, é umas das melhores armas à disposição do matemático. É um risco muito mais ousado que qualquer risco assumido por um jogador de xadrez: um jogador pode até oferecer o sacrifício de um peão ou até de uma peça, mas o matemático oferece em sacrifício o jogo inteiro." É tudo ou nada.

João Moreira Salles é documentarista, diretor de "Notícias de uma guerra particular".


Fonte da imagem: http://www.no.com.br/revista/noticia/42130/atual

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